A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels - Resenha simplificada em série (Parte 1)




A ideologia Alemã, uma das muitas parcerias de Karl Marx e Friedrich Engels, foi escrita de 1845 a 1846 como resposta aos jovens Hegelianos de esquerda, de quem Marx viria, em breve, a ser dissociar. Uma crítica sarcástica, ácida, mas importante, que é o principal referente do materialismo dialético de Marx e onde este aparece em sua forma mais completa, mas que só veria a luz nos anos 30 do Século XX, publicada na União Soviética.
No Brasil eram publicados apenas enxertos da obra até recentemente, quando a Boitempo Editorial lançou a versão integral traduzida do alemão em território nacional, nos permitindo vislumbrar tudo que essa magistral obra têm a dizer. O livro foca na crítica a filósofos específicos, como indica o longo título completo: A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Fuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
Essa resenha é a primeira de uma série de quatro capítulos, em que vou (tentar) analisar aspectos da obra em seus diferentes níveis, esse primeiro capítulo é destinado aos conceitos que considero chave para o seu entendimento, escrita por um jovem Karl Marx e por um mais novo ainda Friedrich Engels, ainda distantes de sua crítica política madura, mais voltados a crítica dos modelos explicativos do mundo que vigoravam na Alemanha e, em maior medida, na Europa.

Sujeito e Objeto

“ (...) os dados históricos eram meros substantivos  para designar um par de categorias simples, assim também aqui, na nova aliança, todas as condições mundanas são apenas disfarces (...)” (2007, p. 291).


Enquanto o Positivismo histórico, outro modelo de descrição da organização do mundo popular no Séc. XIX, pregava um distanciamento do sujeito em relação ao objeto que analisa, de forma a aproximar a análise histórica dos métodos empregados nas ciências naturais, o método materialista advoga a relação entre sujeito e objeto, a análise do objeto em suas contradições e em sua relação com o meio em que está inserido.

Ideologia

Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e que sintetizam a sociedade civil inteira de uma época, segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por meio dele uma forma política. Dai a ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, mais ainda, na vontade separada de sua base real [realen], na vontade livre. (2007, p. 76)

Para Marx o Estado, no capitalismo, é o propagador da vontade das classes dominantes, que dá forma política aos interesses desta classe por meio da lei. A ideologia seria, dentro desse processo, a vontade da burguesia sendo dada como vontade geral, o estabelecimento dos interesses da burguesia como interesses da sociedade. Um interpretação da não-neutralidade do direito às quais muitos autores posteriores, como Michel Foucault (Por mais que negue), muito devem.
Ideologia e direito estão interligadas em Marx, a ideologia da classe dominante perpassa todos os aspectos da sociedade, dando-lhes uma coesão artificial, que permite uma administração da luta de classes, das relações familiares, trabalhistas até os problemas jurídicos, a ideologia dominante está é reproduzida em todas as “relações de poder” da sociedade.

Materialismo Dialético
Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formas mais desenvolvidas. A consciência [bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real.
Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e , a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. Também as formações nebulosas da cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. (2007, p. 94)


O estudo da sociedade a partir de suas inteirações internas e contradições estruturais, da forma como todas as estruturas modificam-se mutuamente. A percepção de que todo estudo sobre as sociedades humanas, em seu nível social ou cultural, deve sempre partir da percepção de que tais processos são produtos da interação dos seres humanos com o meio social em que vivem, em suas materialidade e historicidade e deve partir desse ponto, do contexto em que tais representações foram criadas. Nas citações acima Marx critica os idealistas alemães por inverterem esse processo ou abstrair o mundo às ideias humanas, sem levar em conta o contexto em que surgiram, isto é, de forma ahistórica. Antes de dizer que analisar o antropocentrismo renascentista ou os movimentos românticos, por exemplo, como “as luzes de suas épocas”, deve-se contextualizar tais movimentos, localizar seus agentes em relação dialética com a sociedade em que viviam e, dai, analisar seus ideais.
Em uma interpretação marxista clássica, os maiores expoente dessa forma de análise da sociedade são os conceitos de infraestrutura e superestrutura, em que a infraestrutura abstrai os meios materiais de existência (Natureza como valor de uso, tal como Marx viria a escrever, anos depois, na Crítica do Programa de Gotha [2012 p. 23]), a transformação deste por meio das forças produtivas dos seres humanos e as relações econômicas da sociedade e seus conflitos; a superestrutura, administra a luta de classes, é o aparato político-ideológico (No qual entra a cultura, em uma interpretação um tanto simplista, que viria a ser aprimorada por marxistas posteriores, como Edward P. Thompson, e seu conceito de História Social da Cultura). As contradições da infraestrutura levam a tremores na superestrutura, tremores estes causados pela luta de classes, que a superestrutura administra com o monopólio da força, dos meios jurídicos (Ver Estado e Forma Política de Alysson Leandro Mascaro) e controle ideológico.
A ideia de materialismo dialético analisa a ideologia não apenas em si mesma, mas em conversação com as condições materiais e históricas (Interligadas em Marx) que se perpassam mutuamente e se tornam possíveis, as desmistificação das ideologias precisa ser crítica, não podem ser isoladas do resto da sociedade para ser estudada, mas deve ser vista em suas relações e condições de reprodução no meio social.
Na análise materialista da realidade humana, o trabalho ocupa um papel central e norteador, é por meio dele que os seres humanos criam, a partir da natureza e seus valores de uso, condições para sua existência e sobre ele constroem relações econômicas, sociais e culturais, representações de mundo e de si mesmos, porém não é um elemento harmonioso da sociedade, é um local de relação de poderes, transpassado por conflitos, interesses autoexcludentes. No trabalho é feita uma releitura do conceito de alienação de Hegel, onde a consciência torna-se apenas contemplativa (Conceito bem explicado por Slavoj Zizek com sua “cartografia cognitiva”), não reconhecendo e compreendendo, a alienação ganha contornos mais materiais em Marx e Engels, a alienação do trabalho se dá quando o trabalhador não é portador dos meios de produção de seu ofício e não se reconhece no produto que dela resulta, assim como é obrigado a vender sua força de trabalho a outrem, sendo o próprio trabalhador transformado em mercadoria.
Assim, o materialismo dialético propõe a análise das ideias, instituições, discursos e conceitos em relação as suas condições materiais e históricas (Coisa que Foucault viria a fazer com maior detalhe no campo do discurso, embora tenha, em vida, abominado os marxistas), dessa forma Marx e seu amigo rico transformam o princípio dialético Hegeliano da ilusão, que consiste em “tomar as coisas pela sua forma de aparição e/ou ver as coisas totalmente separadas de sua forma de aparição” na práxis da “Não há prática sem teoria, nem teoria sem prática”, construindo uma inovação que praticamente fundou a sociologia e a qual os historiadores ainda hoje muito devem, embora tenham transformado Karl Marx em um “cachorro morto que todos chutam”.

Karl Marx, Friedrich Engels e a História

O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a História, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Mesmo que o mundo sensível, como em São Bruno Bauer, seja reduzido a um cajado, a um mínimo, ele pressupõe a atividade da produção desse cajado. (2007, p.33)
A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. (2007, p. 35)
“Conhecemos uma única ciência, a ciência da História” (2007, p. 86)

Para os hegelianos a História é a História das ideias, que são o “espírito que guia o mundo” e suas manifestações, Marx e Engels invertem esse sistema, para eles tudo é histórico, e a História está ligada às relações sociais e as representações que desta surgem (As duas em relação dialética, influenciando-se mutuamente, porém, apriori, as representações são criações humanas, como a religião e a ideia de Deus, por exemplo). Os conceitos filosóficos e as formas de estudar as sociedades humanas não podem perder tais elementos de vista, pois a História nasce dessas relações, que são, por sua vez, relações históricas (Prática e teoria mantém relação dialética).
Para Marx os alemães são seres de grande cabeça, mas com corpo minúsculo, pois focam em um “mundo ideal”, uma “razão”, que influencia dialeticamente a História humana, e dispensam as relações que produzem a própria razão e as ideias (Condições socioculturais, contexto histórico, modos de produção, transformação da natureza, seres humanos em relação dialética com o meio em que vivem).

Bibliografia Consultada

HOBSBAWM, Eric. Como Mudar o Mundo, Marx e o Marxismo, 1840-2011. 1ª ed.,Tradução de Donaldson M. Garschagen, São Paulo,2012.

HOBSBAWM, Eric. O que os Historiadores devem a Karl Marx? In: HOBSBAWM, Eric. Sobre História. 2ª ed. Tradução de Cid Kinipel Moreira, Companhia das Letras, São Paulo, 2010.

MARX, Karl. A Crítica do Programa de Gotha. 1ª ed. Tradução de Rubens Enderle. Boitempo Editorial, São Paulo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Fuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). 1ª ed., Tradução de Rubens Enderle. Boitempo Editorial, São Paulo, 2007.





SUED

Nome artístico de Línik Sued Carvalho da Mota, é romancista, novelista, cronista e contista, tendo dois livros publicados, também é graduanda em História pela Universidade Regional do Cariri. Militante comunista, acredita no radicalismo das lutas e no estudo profundo de política, sociologia, História e economia como essenciais para uma militância útil.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às segundas-feiras.
Contato: lscarvalho160@gmail.com









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