A felicidade no contexto da razão

“Que el mundo fue y será una porquería, ya lo sé,
En el quinientos seis y en el dos mil también;
Que siempre ha habido chorros,
Maquiávelos y estafáos”
Enrique Santos Discépolo in Cambalache
        
A felicidade no seu contexto filosófico se inicia nos socráticos e seus discípulos como uma consequência do bem universal, da realização ética e dos bons costumes, ou como a renuncia de tudo e adoção do prazer como o caminho certo de todas as coisas, como foi a alguns hedonistas. Mais tardando, para os grandes filósofos da Idade Média, a felicidade estava em Cristo. Hoje onde está a felicidade?  O que é felicidade na era da pós-verdade, ou no final da idade da razão?
Hoje felicidade é vendida por código de barras a partir de R$ 9,99 em livrarias de aeroportos e rodoviárias. São milhares os livros de autoajuda e caminhos miraculosos que ensinam a felicidade. Eles ensinam que se vai ser feliz com amigos legais, com um emprego bacana, com simplicidade ou excentricidade, com um amor para vida inteira ou se fazendo tudo que se quer e assumindo a volúpia como modo de vida. A liberdade sexual vai trazer a felicidade, a liberdade social vai trazer a felicidade, a liberdade vai trazer a felicidade, o prazer vai trazer a felicidade... Sinto muito pelos que acreditam nessa balela mercadológica... Nada vai te trazer felicidade.
Parece exagero dizer que nada vai trazer felicidade, pois bem, o é. Para que fique claro antes é preciso se explicitar o conceito de felicidade. Considero aqui felicidade o sentimento de plenitude individual na qual se está imune às angústias coletivas e com um imperativo de realização constante ou quase nunca ausente. Em suma, a felicidade aqui é aquilo que achamos que vamos ter um dia e que vai superar todos os momentos da nossa vida acabando com todas as mazelas humanas. Você, caro leitor, com certeza dirá que esse não é seu conceito de felicidade, pois bem, reflita, faça uma avaliação pessoal. Tem certeza que não existe em você o sonho da felicidade idealizada? Da felicidade que supera todas as dificuldades e que vai fazer do mundo um lugar mais bonito?
Se você continuou a leitura... com certeza, você como muitos dos humanos acredita na felicidade vendida nos comerciais televisivos e vive com o propósito de ser feliz.
Não vou criticar se você vive com esse propósito, alguns precisam de propósito para viver, isso é compreensível, só não aceitável.
A felicidade nesse findar da idade da razão alcançou o seu aspecto mais individual e imperfeito. Tornou-se um sentimento autodestrutivo e acima de tudo individual. Ser feliz é mais importante que o coletivo, do que o impacto que se tem no planeta, do que a boa e velha moral e a senhora ética (alienante e dominadora, não discordo de Nietzsche, mas necessária). Todos querem ser felizes, mas nem todos podem ou devem ser felizes, fato. Nesse momento os psicólogos modernos ficam em êxtase, uma pequena frase dessas já lhe qualifica para sessões de terapia e garante um diagnóstico de depressivo. Bem-vindo ao século 21! A felicidade é uma obrigação pessoal, tornou-se um mantra do milênio. Alguns escritores e filósofos modernos fazem até parecer que nos últimos 99 milhões de anos só houve amargura entre os seres humanos.
No aspecto da felicidade não podemos esquecer-nos do aspecto antropológico. Em principio sobreviver garantia felicidade, com certeza. Eu se escapasse de um tigre ou se matasse um mamute que garantisse minha sobrevivência e de minha comunidade durante um mês me encontraria num prazer inominável. Hoje sobrevivência não é mais necessária, precisamos viver 80 anos acreditando que um dia encontraremos a felicidade plena. Como o homem se tornou iludido.
A felicidade hoje no seu contexto psíquico se tornou a maior inimiga da felicidade. A plenitude não é crônica, ser infeliz às vezes faz bem, torna o homem racional e menos domado. Um mundo não suportaria tanta felicidade. A felicidade é um rompimento do contrato social, mas essa explicação fica para próxima, o que cabe nesse texto é dizer que ser feliz não é uma obrigação. 


Josué da Silva Brito
Escritor, paracatuense, acadêmico de medicina e militante dos direitos humanos. Tem seis livros publicados.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente aos sábados.
Contato: josuedasilvabrito1998@gmail.com

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