Prazeres e dores

Maria dos Prazeres era travesti e garota de programa. 26 anos. “Mona velha”, como dizia Catarina, amiga de luta. Trabalhavam juntas, se aprontavam juntas (pintavam as unhas umas das outras, maquiavam-se, depilavam-se...), se divertiam juntas. Diversão era quando um bói mais novinho e gostosinho aparecia no ponto — disputavam-no abaixando o preço cada vez mais, e o espertinho acabava saindo com as duas; e de graça. Mas isso foi escasseando com o tempo. Catarina tinha 25 anos, também era mona velha. As rugas, como em Prazeres, faziam sulcos em suas faces sofridas. Por não se separarem nunca, tinham um relacionamento quase conjugal.
Muito tempo se passou sem que se amassem. Após uma seca semana de luta, sem conseguir nem um cliente sequer, decidiram voltar aos velhos tempos. Apagaram todas as luzes — um pouco por vergonha, um pouco por intimidade. Lamberam-se, dedilharam-se, beijaram-se, fuderam-se. Com voz de maxo, Cata comia Prazeres, e vice-versa. Prazeres era mais bem-dotada; Cata gemia de dor e torpor. Você... você pode voltar no tempo, acender uma luz tênue e ver a cara que Catarina fazia. É de dar arrepios. Foi bom.
Após o coito, Cata voltou pro seu quarto sem dizer nada. Prazeres dormiu sem nem pensar em querer dormir. Amanheceu. Maria dos Prazeres acordou primeiro, fez café, tomou, deixou a mesa arrumada e um bilhete pra amiga: “Cata, vou à feira. Volto antes do almoço. Beijoca, Prazeres”. O carimbo de batom vermelho-vinho sob a assinatura cursiva.
Prazeres foi, mas não voltou. Ligaram pra Catarina informando que a amiga foi espancada até a morte no meio da rua, com todos os olhos da feira atentos, algumas bocas rindo com sarcasmo, alguns dentes escancarando-se com prazer. Voltas que a vida dá. Catarina foi até o local, que não ficava muito longe. Viu a amiga ensanguentada, suas roupas rasgadas. Sua boca mudou de vermelho-vinho pra vermelho-sangue. Tudo nela era vermelho: a regata ex-branca, o short curto ex-jeans — tudo uma vermelhidão cruel. A carne crua, o osso à mostra, o veneno dos agressores pingado nas suas faces — saliva, lascas de pau, borracha de sapatos.
Cata pegou a bolsa da amiga. Sentou-se no chão com lágrimas. Maria dos Prazeres tinha mudado de nome nos documentos e não deixou-a ver nem saber seu novo nome até então. Catarina mandou fazer uma cruz de madeira co’as datas de nascimento e morte da amiga. Nos braços, lia-se: “Aqui jaz Maria das Dores”.
“É...”, murmurou Catarina a si mesma, após enterrada a amiga, “percebi que duns tempos pra cá Maria deixou de ser dos Prazeres pra ser das Dores”. Uma semana depois, Catarina foi enterrada como indigente, sem nome de luta nem de batismo na cruz, por não ter ninguém por si. Dizem que morreu de desgosto.



Vinícius Siman

Escritor, diretor, crítico literário e militante dos direitos humanos. Tem nove livros publicados.
Escreve ao Ad Substantiam semanalmente às sextas-feiras.
Contato: souzasiman@gmail.com

Comentários

  1. Maravilha. Um acinte ao ódio. Lembrou-me bastante o meu "Eu sou eu, mãe". Acho que de diferente de você eu me aproveitaria da data de hoje [aniversário de Maria (Natividade de Nossa Senhora)] e A poria velando por elas enquanto os cristãos matam Maria dos Prazeres/Dores.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. http://artedoartista.blogspot.com.br/2011/09/eu-sou-eu-mae.html

      Excluir
    2. Eu me inspirei justamente nesse seu cronto. Por isso queria que você lesse.

      Excluir
  2. Gosto de literatura que me que me dê porrada no estômago. É humanidade pura!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas